Por que, seu dotô?


O que é ser doutor? Essa pergunta, que aparentemente parece simples de ser respondida, gera uma verdadeira polêmica entre as pessoas. Uns responderiam a está questão da seguinte forma: doutor é quem tem doutorado. Já outros diriam o seguinte: doutor é o médico ou o advogado. Em alguns casos, esses últimos poderiam até adicionar aqueles que têm doutorado para responder a pergunta. Todavia, essa é uma das discussões mais frequentes tanto nas redes sociais, como também dentro das universidades brasileiras. Há dois grupos opostos que travam verdadeiros conflitos onde estiverem apenas por causa dessa pergunta. Não há um consenso. Há discussões que, na maioria das vezes, não levam a lugar nenhum. Mas afinal, qual é a definição dessa palavra de seis letras? Há só uma resposta? Os dois grupos estão certos ou apenas um está? Há diferença entre o doutor perante a sociedade e o doutor acadêmico?
Indaguei-me sobre essa discussão recentemente e percebi que eu não sabia o que era, de fato, ser um doutor. Pesquisei em algumas fontes qual era verdadeiro significado desse termo. Descobri que, etimologicamente, doutor vem da palavra latina doctor, a qual significa mestre ou professor. Há uma relação com o verbo docere que significa ensinar. Dessa forma, etimologicamente falando, doutor significa: aquele que ensina.
Entretanto, com o passar do tempo, novos significados foram adicionados a essa palavrinha com meia dúzia de letras. Sim, a palavra doutor foi se tornando polissêmica. Por isso, torna-se tão difícil defini-la. Um dos significados dado a ela foi que o doutor recebe esse título após receber o mais alto grau acadêmico concedido pelo doutorado. Todavia, doutor também é usado como uma forma de tratamento em meio social e, por isso, médicos, advogados e outros profissionais também são chamados como doutores.
Não só no Brasil, como também em praticamente todos os países do mundo, o termo doutor é utilizado para o médico e para o advogado. Essa forma de tratamento iniciou nas universidades de Bolonha e de Montpellier. Há até boatos que existiu uma legislação que afirmava isso.
Durante os séculos, o termo doutor poderia ser utilizado para várias situações. Havia o doutor da igreja, o doutor da lei, o doutor da mula ruça (esse é o melhor. No final, explico o que significa), doutor de capelo ou de borda e o doutor raiz. O título de doctor honoris causa permanece até os dias atuais. Para receber este título, não há necessidade de fazer um doutorado, ou de ser médico, ou de ser advogado, aliás, nem graduação importa. Esse título é concedido por uma universidade para alguém com méritos. Esse alguém pode ser ou não do mesmo país da universidade.
Embora já tenham existido e existam alguns desses significados, a briga com o termo doutor sempre volta para aqueles que fizeram o doutorado versus médicos, advogados e outros profissionais que usam o termo doutor sem doutorado. O país descobridor do Brasil, Portugal, descobriu uma forma de solucionar o problema em seu território. O país lusitano utiliza o termo doutor para aqueles com o doutorado e a abreviação dr. Para os médicos e advogados. Portanto, pelo tamanho do doutor (por favor, não entendam mal), é possível identificar aqueles com um grau de importância maior. Já na Itália, o termo dottore é utilizado por pessoas com o doutorado, mas também, especialmente, ele é usado por médicos.
No Brasil, a discussão não conseguiu ser encerrada. As pessoas continuam divididas. Em 11 de agosto de 1827, D. Pedro I implantou uma lei com o seguinte artigo:
Art. 9.º - Os que frequentarem os cinco anos de qualquer dos cursos, com aprovação, conseguirão o grau de bacharéis formados. Haverá também o grau de doutor, que será conferido àqueles que se habilitarem com os requisitos que se especifiquem nos estatutos, que devem formar-se, e só os que obtiverem poderão ser escolhidos para lentes.
Nesses estatutos, os advogados poderiam receber o grau de doutor. Os médicos também foram beneficiados com esse artigo e com outros requisitos. Além disso, há advogados que até hoje defendem que eles têm sim o direito de usar o termo doutor, porque, antes mesmo da lei de D. Pedro, a rainha de Portugal, D. Maria, também conhecida historicamente por “a louca”, teria dado esse título para os formados no curso de direito. Por mais que estas leis tenham existido, a relação metrópole-colônia acabou assim como o império também. Portanto, essas leis não têm mais vigor no país. Porém, por uma questão de costume, médicos, advogados e outros profissionais sem doutorado continuam sendo tratados como doutores pela população brasileira.
Atualmente, os dicionários brasileiros trazem um gama de significados para o termo doutor. De acordo com o dicionário Michaelis, doutor significa:
1)              Aquele que tem habilitação para ensinar;
2)              Aquele que defendeu tese de doutorado em uma universidade: Doutor em letras;
3)              Designação dada aos mestres da escolástica que disseminaram as verdades fundamentais do cristianismo;
4)              Indivíduo que tem experiência e conhecimento das coisas: De tanto padecer, tornou-se doutor nos reveses da vida;
5)              Indivíduo que tem presunção de sábio, que alardeia sabedoria;
6)              JOC Pessoa que habitualmente faz certa coisa (errada) ou tem determinado comportamento (danoso); useiro e vezeiro: Doutor em tramoias. O filho dele é doutor em noitadas e confusões;
7)              Título que, por cortesia, se concede aos que se diplomaram em curso superior, especialmente em medicina;
8)              Qualquer médico; esculápio;
9)              Termo indicativo de deferência e respeito na hierarquia social: O doutor deseja mais alguma coisa? Um pedido do doutor é uma ordem;
10)           Título conferido a juízes e delegados por disposição legal;
11)           TEAT Personagem-tipo da commedia dell’arte que geralmente representa um médico ou advogado, fazendo uma sátira dessas (e de outras) profissões. Pertencente à categoria dos patrões, apresenta-se com toga e beca, usa e abusa de termos e expressões latinas e exibe um comportamento vaidoso e arrogante.
Já de acordo com o dicionário Aurélio, doutor é quem:
1)              Aquele que se formou na universidade e recebeu a mais alta graduação desta após haver defendido tese;
2)              Aquele se diplomou numa universidade;
3)              Pop. Médico.
Em suma, os dicionários mais influentes do Brasil definem o doutor como: 1º) aquele que cursou o doutorado; 2º) o médico; 3º) o advogado; 4º) o delegado de polícia; 5º) o juiz; 6º) uma pessoa considerada muito culta, importante; 7º) por cortesia, todo o indivíduo formado em curso superior; 8º) o portador do título “Doctor honoris causa”.
Essas são todas as definições sobre doutor encontradas atualmente no Brasil. Eu disse, é um termo polissêmico. O fato mais curioso é que, de acordo com as definições, o doutor pode ser um indivíduo que tenha cursado qualquer curso superior. Entretanto, não há esse costume.
 Ainda sobre a história do Brasil, o título de doutor foi, por muito tempo, utilizado como método segregacionista para separar ricos e pobres e os privilegiados dos desprivilegiados. Nesse contexto, o doutor era aquele no topo da hierarquia social. Esse título era utilizado como forma de colocar os pobres em seu “devido lugar”, ou seja, abaixo daqueles que eram os ricos.
É indiscutível dizer que chamar pessoas de maior poder econômico e de certo privilégio social de doutores é muito mais comum em países de grande desigualdade social, pois há bem menos questionamentos e críticas quanto à utilização desse título.
 Ainda que eu tenha encontrado muitos materiais importantes sobre o assunto, chegou uma hora em que tudo se tornou uma mesmice, pois eu não conseguia encontrar e aceitar uma definição para o que realmente é ser um (a) doutor (a). Com base em pensamentos e observações, veio à minha mente a possibilidade do doutor acadêmico ser diferente do doutor perante a sociedade. Para ter, mais ou menos, uma ideia concreta sobre isso, realizei um curto questionário de sete questões e sai à procura de conhecidos para responder às minhas perguntas. As perguntas eram:
1)              O (a) senhor (a) já pesquisou qual era o significado do termo doutor (a)?
2)              Para o (a) senhor (a), o que é ser doutor (a)?
3)              Para o (a) senhor (a), há diferença entre o termo e o título de doutor (a) acadêmico (a) e doutor (a) perante a sociedade?
4)              Para o (a) senhor (a), porque médicos, advogados, odontólogos e outros profissionais usam o termo doutor sem terem doutorado?
5)              O (a) senhor (a) já se sentiu irritado (a) ou ofendido (a) por ver um médico, um advogado, ou outro profissional utilizando o termo de doutor (a) sem ter o doutorado?
6)              O (a) senhor (a) concorda com médicos, advogados, odontólogos e outros profissionais que usam o termo doutor sem terem doutorado?
7)              Como o (a) senhor (a) acha que médicos, advogados, odontólogos e outros profissionais sem doutorado devam ser tratados?
Entrevistei dois advogados, sendo que um também é graduado e professor de história e que está fazendo doutorado, um professor graduado em física, um recém-aprovado no curso de física e uma estudante que está se preparando para passar em medicina.   Não foi nem de longe uma pesquisa científica, pois o espaço amostral foi extremamente irrisório para isso, mas a partir dela consegui manter certas ideias a respeito do assunto. Algumas questões tiveram respostas variáveis, entretanto, outras merecem certo destaque neste artigo.
A primeira pergunta teve resposta unânime. Nenhum dos entrevistados nunca chegou a pesquisar o que significa o termo doutor. Aqui vai uma revelação, nem eu havia pesquisado antes de decidir fazer este artigo. Voltando para o artigo, o destaque dessa pergunta e dessa resposta é algo que revela muitas coisas importantes. A primeira coisa é que desconhecendo o significado do termo, muitas pessoas podem ficar vulneráveis a influências de outras pessoas a respeito da discussão de quem deve ou não utilizar o título de doutor.
A segunda coisa é que desconhecendo o significado do termo doutor, as pessoas teriam dificuldades ou não saberiam responder a segunda pergunta do questionário, pois, a probabilidade de terem uma opinião sobre o assunto é quase que nula. Entretanto, ainda que alguns nunca tenham pesquisado o que significa ser doutor, eles respondem a segunda pergunta de formas interessantes, como: doutor não, necessariamente, precisa ter o doutorado, ele pode ser um médico ou um advogado; doutor é quem defende uma tese e pode ministrar aulas em universidades e faculdades públicas. Essas definições não estão nem um pouco erradas.
A terceira pergunta, em minha opinião, era a melhor pergunta. Há diferença entre o (a) doutor (a) acadêmico (a) e o (a) doutor (a) perante a sociedade? Quase todos responderam que sim. Aqui está a chave para a explicação do que é realmente ser um doutor e como a sociedade enxerga e denomina quem é ou não um doutor. Eu venho apertando essa tecla desde o início desse artigo e, talvez, eu me exalte um pouco daqui em diante.
Não só as respostas do pequeno questionário, mas também as minhas observações de muitas discussões em postagens na internet e a minha pesquisa realizada para a realização deste artigo me levaram a crer que há um doutor social e há um doutor acadêmico.
Muitos médicos, advogados, odontólogos e outros profissionais sem doutorado, mas que usam o termo doutor são realmente arrogantes e, por isso, muitas pessoas, na maioria das vezes intelectuais, contrapõem-se contra a utilização desse título por esses profissionais. É, por essa razão, que muitos indivíduos respondem que sim à pergunta de número cinco e defendem que médicos, advogados e outros profissionais sem doutorado devam ser tratados sem o título de doutor em resposta à questão número sete.
Chamar estes profissionais de doutores é um costume e não é uma lei. Não é obrigatório. Portanto, eles nunca devem obrigar as pessoas a chama-los de doutores. Entretanto, quem chama um médico ou um advogado de doutor não está errado. Médicos, advogados, odontólogos e outros profissionais que não têm doutorado são, muitas vezes, chamados de doutores por uma questão de costume social. Um advogado sem doutorado não pode exigir que o seu cliente o chame de doutor. O mesmo vale para o médico diante do seu paciente. Além disso, do que vale também, às vezes, ter um título de doutor, mas não conseguir controlar o ego e se achar a melhor pessoa do mundo. Nem todos são assim e, por conhecer algumas pessoas assim, eu admiro muitos professores que tive e que ainda tenho.
Doutor não é somente um título para médicos e advogados. Não é somente algo que vale apenas para aqueles que tenham doutorado. Ser doutor é ser sábio. É ter conhecimento, mas ter também humildade e respeito. Doutor não obriga ninguém a chama-lo assim. Doutor tem múltiplos significados. Doutor não é arrogante. Aliás, ser doutor, muitas vezes, é algo estritamente pessoal. Quando alguém se autodenomina doutor, assume uma responsabilidade imensa. Do que adianta se achar o rei da cocada preta, como diz minha mãe, e, às vezes, por se achar tanto, essa pessoa não consegue fazer com que ninguém a enxergue assim. Isso é ser doutor em mula ruça. É, talvez, até ter o título de doutor, ou ser um médico, ou um advogado, mas não tem nem metade dos conhecimentos que diz e aparenta ter. Esse doutor sofre com a zoação. Aliás, esse sim é um doutor de zoeira.
Ser doutor também depende do que o outro pensa sobre você. Não sei como vou ser depois que eu me formar em medicina. Não sei como irão me chamar, mas não me importo. Não me tratando com falta de respeito, qualquer um pode me chamar de senhor, ou pelo o meu nome. Aliás, sei que meus amigos irão me chamar, muitas vezes, pelo meu apelido. Não sei se um dia chegarei a fazer doutorado, mas se um dia eu fizer, eu creio que ainda assim não me sentirei detentor de grande saber, pois não há como saber tudo.
Depois desse longo texto, espero ter expressado a minha opinião sobre o que eu acho que é um doutor. Doutor depende do contexto, há diferença entre o social e o acadêmico e isso faz com que a palavra doutor tenha um significado polissêmico.
Lucas Silva Sousa
OBS: muito obrigado àqueles que ajudaram e apoiaram-me a realizar a pesquisa para a elaboração deste artigo.
· Bibliografia
1.               VOLANIUK, Emerson. Por que as pessoas chamam os médicos de doutores? ACADEMIA MÉDICA. https://academiamedica.com.br/por-que-as-pessoas-chamam-os-medicos-de-doutor/. Acesso em: 05/04/2017;
2.               BONAMIGO, Elcio Luiz. Quem é doutor? CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA – CFM. http://portal.cfm.org.br/index.php?option=com_content&view=article&id=20297:quem. 29 de novembro de 1999. 18 de setembro de 2012. Acesso em: 05/04/2017;
3.               BRUM, Eliane. Doutor advogado e Doutor Médico: até quando? Época. http://revistaepoca.globo.com/Sociedade/eliane-brum/noticia/2012/09/doutor-advogado-e-doutor-medico-ate-quando.html. 10 de setembro de 2012. Acesso em: 05/04/2017;
4.               Dicionário Michaelis. Doutor. http://michaelis.uol.com.br/busca?r=0&f=0&t=0&palavra=doutor. Acesso em: 05/04/2017;
Mini Dicionário Aurélio. Doutor. 8 ª edição, revista e atualizada. EDITORA POSITIVO.

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